ENTREVISTA COM RICARDO BEZERRA
Por Klaudia Alvarez
A Página dos Amigos de Fagner mais uma vez realiza uma entrevista com um personagem importante e atuante na cena musical/cultural, além de muito ligado à carreira de Fagner. Dessa vez vamos conversar com o arquiteto, professor universitário e compositor cearense RICARDO BEZERRA, autor, entre outras canções, de Cavalo-ferro, uma das mais marcantes que Fagner já gravou.
As perguntas foram elaboradas por Ricardo Piolla, Geraldo Medeiros Jr. e Klaudia Alvarez.
- Ricardo, é um grande prazer para nós, da Página dos Amigos, conversar com você. Queríamos começar pedindo que você nos conte como conheceu Fagner no final dos anos 60 e como você o levou para frequentar o Bar do Anísio, reduto da intelectualidade cearense da época.
RB - Conheci Fagner logo após ele ter ganho o festival da Música Cearense, promovido pelo Jornal O Povo, em 1968, com a música “Nada sou”, em parceria com o Marcus Francisco. Foi nos corredores da Rádio Iracema, onde eu estava trabalhando, representando o Diretório dos Estudantes da Escola de Arquitetura da UFC, na organização de outro festival: o Festival de Música Aqui no Canto. Nesse primeiro encontro já nasceu uma grande amizade. Amizade à primeira vista. Daí fizemos planos de compor em parceria, o que começamos a fazer logo nos dias seguintes. Nessa estória do Bar do Anísio, realmente fui eu quem teve a honra de apresentar o Fagner para a turma da universidade. O Bar do Anísio era um dos lugares que frequentávamos. (Nota da Página dos Amigos: O Bar do Anísio se localizava na Av. Beira Mar, na Praia de Mucuripe. Hoje tem um edífício no local onde ele ficava). Por conta de nossa amizade e pelo fato da Marta, irmã dele, trabalhar na Escola de Arquitetura, ele passou a ir muito lá também. A Escola era o local de maior efervescência cultural da cidade e, portanto, muitos artistas da cidade estavam sempre por lá. Era a Escola de dia e o Aníso de noite e madrugada adentro.
- Em 1967 você começou a participar dos festivais de música realizados em Fortaleza. Como se deu seu envolvimento com a música ?
RB - Quando nasci, para falar a verdade. Em casa, minha mãe tinha estudado piano durante oito anos, minhas irmãs estudavam piano, meu pai era um amante da música clássica ( no almoço e no jantar era sagrado se ouvir esse tipo de música e eu era o encarregado de colocar os discos nessas horas). Estudei piano dos 7 aos 8 anos de idade e minha mãe pensava que eu poderia me tornar um concertista de música erudita. Felizmente, me enfadei dos exercícios maçantes e fiquei só tocando de ouvido. Procurava tocar as músicas do rádio, fora aquelas besteiras tipo “O Bife”. Quando estava na adolescência, minha irmã resolveu estudar violão com uma prima nossa, eu fui na onda e comecei a praticar as músicas do caderno dela. Daí abandonei o piano e fiquei no violão, instrumento que foi o meu meio musical até depois de casado e com filhos. Apesar de nunca ter abandonado o piano totalmente, quando estava fazendo meu doutorado, resolvi comprar um teclado (tipo sintetizador) e já há algum tempo voltei para as teclas, onde me sinto mais à vontade.
- No final dos anos 60 você chegou a trabalhar na produção dos programas de TV “Gente que a gente gosta” e “Porque hoje é sábado”, veiculados em Fortaleza onde Belchior e Fagner se apresentavam. Fale-nos sobre isso.
RB - Era muito gostoso trabalhar naqueles programas. Uma pessoa que merece ser lembrada pelo excelente caráter que sempre demonstrou, é o Gonzaga Vasconcelos (que depois foi trabalhar na TV Educativa do Rio). Ele era o apresentador e produtor geral desses programas. Ele foi a pessoa que mais “deu corda” para a moçada se mandar pro tal do “Sul Maravilha”. Era, basicamente, a nossa patota ( é o novo...)que se apresentava ali. Normalmente sempre cantava junto com o Fagner. Na verdade, naquela época de rebeldia, a gente mais gritava que cantava. Haja garganta... Tem um monte de outras pessoas, além do Belchior e Fagner que fizeram parte daquela estória e que eu gostaria de citar: o Ribamar Vaz (estudante de Medicina), o Jorge Melo (hoje músico em São Paulo), o Cirino (grande violão, hoje morando em Fortaleza), o Rodger e a Téti, o Ednardo... e outros que agora não lembro. Naqueles tempos, o Fagner e eu cantávamos nossas parcerias: Cavalo-ferro, Manera Fru Fru Manera e a do Astronauta (cá prá nos, uma cópia mal feita daquela música dos Mutantes...). A verdade é que éramos todos uns ilustres desconhecidos, um bando de frangotes metidos a artistas, e o público (os programas eram de auditório, na TV Ceará) não dava a menor bola prá gente. Parecia que entrávamos, cantávamos e saíamos do palco praticamente sem sermos notados. O público queria mesmo era ver os cantores tradicionais da cidade, entre os quais se destacava a Ayla Maria.
- Em 1978 você lançou o LP “Maraponga”, um disco excelente, onde além de mostrar seu lado de compositor, você provou que sabe cantar. Fale-nos sobre esse trabalho e o que ele representa, olhando com os olhos de hoje.
RB - Realmente, tenho que reconhecer que o disco “Maraponga” é excelente. Por outro lado, tenho que reconhecer também que esse mérito se deve muito pouco a mim. Qual disco nao seria excelente com um time daqueles ? Uma verdadeira seleção, encabeçada pelo mago Hermeto Paschoal e tendo como titulares Nivaldo Ornelas, Jacques Morelembaum, Mauro Senise, Sivuca, Itiberê e Robertinho de Recife, somados às vozes de Raimundo Fagner e Amelinha. E, de fato, o grande mérito é do produtor: Fagner foi quem arregimentou todo esse pessoal.Com relação a essa estória que sou um bom cantor, é melhor que você reformule essa idéia. Agradeço a referência, mas isso é uma total inverdade. Pra falar a verdade nem sequer músico me considero. (Nota de Klaudia Alvarez: Continuo achando que Ricardo tem uma voz marcante e muito agradável de se ouvir) Minha habilidade nos teclados é minimamente suficiente para eu compor minhas melodias e pronto. Prova disso é que no disco que gravei em 2002, totalmente instrumental, eu não toco uma nota sequer. Deixei a execução para os verdadeiros músicos, no caso, excelente músicos entre os quais posso citar os arranjadores (geniais) Adelson Viana, Cristiano Pinho e Ricardo Bacelar, e ainda os (também geniais) Carlinhos Ferreira, Marcio Rezende, Heriberto Porto, Luizinho Duarte, Ítalo Almeida e a participação especialíssima de Mingo Araújo.
- Você foi um dos primeiros parceiros do início da carreira de Fagner, depois a produção ficou mais rara. Por que você não voltou a compor com ele ?
RB - Depois que eu percebi que ser artista popular não era minha praia, fui cuidar de terminar minha faculdade. Logo depois disso me casei com a jornalista Bete Dias, com quem sou ( graças a Deus, muito bem) casado há quase 33 anos e fui morar em Recife (ficamos lá quase um ano). Nessa época ainda tive alguma atividade musical. O Alceu Valença ia lá em casa vez por outra, ficamos amigos do Tiago Amorim que é um grande promotor cultural em Olinda e a nossa turma era quente. Além dos artistas e intelectuais joves, entre os quais se destacavam o Ivan Maurício, o Cavani Rosas, além do Tiago. Tínhamos uma turma muito boa de amigos jornalistas: Ricardo Noblat, Ricardo Leitão, Tadeu Lubambo entre outros. Olinda era o point. Lá era onde tudo acontecia. O Tiago organizou um grande show chamado Sete Cantos do Norte, onde participaram Alceu, Zé Ramalho, Ave Sangria (uma banda muito legal), Robertinho de Recife, Fagner, um outro que esqueço o nome e eu lá no meio... Depois disso, quando voltei para Fortaleza, fiz um show onde chamei para tocar comigo uma turminha bem jovem, mas em quem eu acreditava totalmente. Não me enganei...Nessa turma estavam os irmãos Caio e Graco Silvio, Francisco Casaverde( o querido Ferreirinha), Célio Loureiro, Tarcísio Lopes e ainda, contamos nesse show, com a participação especialíssima do grande Petrúcio Maia.Nessa época, Fagner gravou, com o Ney Matogrosso, uma parceria minha com o Fausto Nilo (Postal de Amor) e aí entrei em uma hibernação musical. O Fagner veio morar conosco na Maraponga, na nossa casa. Naqueles seis meses em que ele morou conosco, o nosso sítio era uma festa constante: música, futebol, artes plásticas ( foi aí que o Fagner começou a desenhar e pintar) e outras coisas mais, típicas daqueles anos loucos...
Felizmente o Fagner encontrou o Fausto Nilo para ser seu quase letrista oficial. Se tivesse continuado comigo como letrista, com certeza não teria feito o mesmo sucesso. Eu gostava mesmo era de fazer música. As letras que eu havia feito foram mera necessidade, já que o Fagner ainda não havia se botado para escrever. (Na verdade ele fez poucas canções com letra e música dele, mas essas poucas são todas antológicas).
Bem, eu acho que ainda não respondi à sua pergunta. A verdade é que apesar de termos mantido uma grande amizade por um bocado de tempo, daquela de se ver todo dia, de andar sempre junto, completando o nosso trio o genial Mino Castelo Branco (cartunista, artista plástico, poeta, filósofo entro outros predicados), a vida deu voltas e acabamos por nos afastar naturalmente.
- E como é hoje a sua relação com o Fagner ? Há alguma chance de novas parcerias ?
RB - Minha relação hoje com ele é praticamente telefônica. Aqui acolá eu ligo para ele e só acolá ele liga para mim (às vezes às 2 horas da madrugada). Com relação à parceria, só o destino dirá, ou melhor dizendo, só Deus sabe...
- A música Cavalo-ferro é uma das primeiras da carreira de Fagner. É verdade que se pode ver algumas críticas ao poder em sua letra ?
RB – Sem dúvida...Na verdade nunca fui ativista político, mas qualquer um, àquela época, sentia, na pele, o autoritarismo, a censura, a ameaça velada, o medo do poder ditatorial. Qualquer manifestação cultural ou artística tinha que ser antes censurada na Polícia Federal. Cavalo-ferro não escapou. Na letra, eu havia escrito “onde se decide o bem e o mal” e os censores, em Brasília, mudaram para “onde se divide o bem e o mal”. Grande m...! Também foi só isso que mudaram. Acho que não se incomodaram de eu dizer que o Planalto Central (naquela época), era um “concreto-ferro-surdo-cego”. Nesse ponto, tenho a impressão que os censores, provavelmente nascidos em outras cidades do Brasil, e que deviam viver cheios de saudades de suas terras, concordavam plenamente comigo...
- Em entrevista, você já afirmou que Manera Fru Fu conta a estória de uma prostituta num grande centro urbano. É isso mesmo ? Qual a lógica da música e como ela foi composta ?
RB – Fru Fru é o que podemos chamar de parceria mista. Cada um (o Fagner e eu) fez uma parte da letra e uma parte da música, apesar de que a maior parte da música é do Fagner e da letra, minha. Naquela época era moda a metalinguagem (ver “Vaila” do Ednardo com parceria do Brandão). E nós fomos na onda...Enquanto estava construindo o corpo geral da letra, não me passava pela cabeça qualquer estória de prostituta...Depois de terminado é que inventei essa conversa, pois realmente tinha tudo a ver. Algumas pessoas achavam que era um travesti... Deixo essa parte, no entanto, para Freud explicar a de cada um... O que é certo é que na época fazia muito sucesso o Jorge Ben com “Charles Anjo 45”, que tinha aquele refrão que dizia: “take it easy my brother Charles, take it easy meu irmão de coôorrr” Aí na letra de Fru Fru eu transformo isso para “têc têc têc ri, brode brode brode chá” . Entenda quem quiser... Aliás naquela época ninguém estava muito preocupado em se fazer entender. (Depois dessa declaração, espero que o Jorge Benjor não queira cobrar pelos direitos autorais...)A minha parte da música é só o refrão, sendo o restante do Fagner. É, desculpe a falta de modéstia, uma das músicas mais criativas e intrigantes produzida naquela época e até mesmo para os padrões de hoje. Pelo fato de ser uma música bem diferente, só os corajosos e mais afoitos topa(ra)m gravá-la. (Essas qualidades geralmente só se encontram nos mais jovens). Diferente de Cavalo-ferro que já teve inúmeras regravações, por ser uma canção mais fácil de deglutir e ter um astral de “hino de uma geração” ( a modéstia me abandonou de vez...)
Aliás, apesar dessas duas músicas terem sido, junto com Mucuripe, as principais canções com as quais o Fagner rompeu no cenário nacional da MPB, nenhuma dessas nossas duas parcerias está no seu repertório de shows. A ausência de Fru Fru é bastante explicável, pois não temos mais 18 anos para sair por aí gritando “Fru Fru manera frufru manera fru fru...” Já, para Cavalo-ferro, acho que a única solução seria ele transformá-la em um forrózão e incorporar ao seu repertório nordestino. Fica aí a idéia...Talvez valha a pena, pois a letra ainda é atual, bastando para tal, acrescentar na famosa frase censurada as palavras “não” e “sabe mais”. Ficaria assim: “pulsando nun segundo letal/no planalto central/ onde NÃO se SABE MAIS dividir o bem e o mal...” Dá pra entender, né ?
- Como você vê o estágio atual da carreira de Fagner ? Você concorda que tem havido, nos últimos anos, uma tentativa por parte dele em recuperar um pouco o público perdido nos anos setenta ?
RB – Não sei se ele está preocupado com isso. O lugar que ele ocupou e ocupa hoje, ninguém pode tirar. Ele ainda é um artista altamente respeitado e a procura por seus shows continua firme e forte. Mesmo da época em que ele teve alguns produtores que popularizaram o trabalho do artista, ele tirou algumas jóias que se incorporaram como clássicos de seu repertório como “Borbulhas de Amor”, que um monte de gente adora, Deslizes e outras mais.
- Os grandes nomes de nossa música já passaram dos 60 anos (Chico Buarque, Caetano, Milton, Ney Matogrosso), ao mesmo tempo em que nomes como Maria Rita, Chico César e Zélia Duncan são mais exceções que regras. Como você vê o atual momento da nossa música e quais as principais tendênciais que agradam aos seus ouvidos ?
RB – Sou fã de carteirinha de Maria Rita e do Chico César. (Não conheço bem o trabalho da Zélia Duncan, portanto não posso falar). Existe, realmente uma crise na MPB. Aliás, andam até atrás de outras siglas para ver se a coisa muda de figura.No meu entender, a crise não é de artistas (estes existem em grande quantidade e de excelente qualidade), mas da “máquina” das gravadoras. Num curto espaço de tempo, o mercado deu tantas voltas, tudo tão rápido, que as antes “onipresentes” e “onipotentes” gravadoras, com seus diretores que eram verdadeiras estrelas da mídia nacional e até internacional, ficaram completamente tontos e atordoados. Não souberam dar uma resposta imediata para os sites de música na Internet, o mp3, a copiadora de CD barata – que qualquer um pode ter em casa – a inevitável pirataria... e outras coisas mais. Essa gigantesca “paulada na moleira”da tal da toda poderosa “máquina” desarticulou todo o sistema. Os grandes artistas foram dispensados, indo para esquemas alternativos (viva o Antonio Adolfo, precursor de tudo isso), ficando no esquema somente os atistas de massa (normalmente de péssima qualidade – pelo menos para os meus ouvidos), impulsionados pelas TVs comerciais e um ou outro de qualidade, como os indestrutíveis ( até segunda ordem) Roberto Carlos, Caetano Veloso e Chico Buarque.
- Quando teremos a chance de ver um show de Ricardo Bezerra ?
RB – Provavelmente... nunca !Músicas de Ricardo Bezerra gravadas por Fagner:
1 – Sina (Fagner/Ricardo Bezerra/Patativa do Assaré)
2- Cavalo-ferro ( Fagner/Ricardo Bezerra)
3- Manera Fru Fru Manera (Fagner/Ricardo Bezerra)
4- Postal de amor (Fagner/Fausto Nilo/Ricardo Bezerra)
5- Cobra (Alano Freitas/Stelio Valle) Voz: Ricardo Bezerra e Fagner
6- Gitana (Ricardo Bezerra) – Voz: Fagner, Ricardo Bezerra e Amelinha
7 – A nova conquista (Fagner/Ricardo Bezerra) Voz: Fagner e Cirino
Discografia de Ricardo Bezerra:
- Maraponga – EPIC, 1978
-Notas de viagens , CD, 2002