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FAUSTO NILO:
O
ARQUITETO QUE CONSTRÓI CANÇÕES OU O LETRISTA QUE TRANSFORMA CONCRETO EM POESIA

O material abaixo foi organizado pela nossa amiga Klaudia Alvarez (RJ) e é fruto de uma conversa que tive com Fausto Nilo, em Outubro de 2003, em sua casa em Fortaleza. Agradecemos de coração ao Fausto, pela gentileza em nos receber, ao Luciano Sá, pela intermediação para este encontro e ao Geraldo Medeiros Jr (Campina Grande - PB) pela sugestão em alguns temas abordados.

 

PROCESSO DE CRIAÇÃO
No
meu caso, as primeiras letras eu escrevi em um papel e entreguei ao parceiro.  A primeira letra que realizei, de fato, foi Dorothy Lamour, com Petrúcio Maia e a outra, quase na mesma época, foi Fim do Mundo com Fagner que foi gravada pela Marília Medalha. Essas duas músicas eu escrevi a letra e passei para os parceiros, que é o modo como fazem 99% dos letristas.  Essa técnica é a mais universalizada.  É que se tem a tradição de que a letra da canção vem da literatura Eu não gosto muito Nunca pretendi ser poeta, escrever livros, prefiro ser chamado de letrista, me sinto colega de Mário Lago, Lupicínio Rodrigues, Orestes Barbosa.  Poeta é coisa de livraria, a pessoa compra para ler em silêncio, é uma outra técnica que eu jamais realizaria a contento.

Apesar de ter feito essas letras no início, eu depois inverti o processo.  Sou um letrista que trabalha em cima das melodias. Devo ter aqui nos meus arquivos por fazer ainda as letras,  umas  trinta melodias do Dominguinhos.  Tenho sempre melodias do Geraldo Azevedo, João Donato, Fagner, Sueli Costa, meus parceiros mais constantes Eu fico ouvindo aquelas músicas e as letras chegam de forma natural Eu fico prestando atenção, acariciando-as e ajudando para que elas cantem… O parceiro um som e a música está querendo cantar.  Letrar uma música, para mim, é um trabalho a serviço da música, é pra cantar mesmo.  Tem umas partes que são fáceis de memorizar, outras  produzem sonhos, imaginações.

Esse compartilhamento entre o ouvinte e quem faz a letra é uma coisa complexa.  No meu aprendizado, 31 anos de atividade profissional, acho que é uma cumplicidade entre você e as pessoas que fazem parte de sua legião, que têm algo em comum com você. Mas também que a canção seja um entretenimento, não importa se seja melancólica, todas as emoções tem valor Então, quando eu ouço uma melodia que os parceiros me dão, eu procuro descobrir o que ela quer passar e quando descubro, faço a letra.  É assim que eu trabalho.  Sou um letrista que põe letras sobre as melodias, o que não quer dizer que eu não possa fazer o contrário Agora, com Ivan Lins está ocorrendo isso.  Estamos com uma parceria prometida desde os anos 70.  Ele esperando que eu lhe passasse uma letra e eu esperando uma melodia dele e nunca acontecia… Agora eu me dei por vencido e passei umas letras para ele Com Fagner isso quase nunca acontece.  faz parte de nossa forma de compor Ele me dá uma melodia e eu ponho a letra.

ARQUITETURA X COMPOSIÇÃO
Pessoas
que tem duas atividades são vistas como dublês, como se uma das duas atividades fosse um hobby e a outra realmente a principal, mas no meu caso não é.  São duas coisas misturadas na minha vida com a mesma paixão, a mesma dedicação.  É uma dádiva do Céu Quando uma está me cansando, tenho a outra e todo dia fico nesse moinho.  Sou o sujeito mais feliz do mundo por ter essas duas atividades que vieram juntas Desde criança, na minha mais remota lembrança, a música estava presente como ouvinte.  Fui freqüentador de auditório de rádio, sabia tanta música que as capturava do rádio na hora exata em que elas tocavam. E também desenhava.

Desde criança convivo bem com essas duas artes.  No colégio desenhava bem e isso sempre criava situações confortáveis entre os colegas de escola e de rua Eu vim fazer letra de música quando saí da universidade em 1971, em Brasília.  Foi o Fagner quem me pediu uma letra Eu tinha passado uma para o Petrúcio Maia, morrendo de vergonha (Dorothy Lamour) e fiquei com medo da censura, de como Petrúcio ia encarar aquilo pois eu não era letrista Até ali nunca tinha feito uma música. Eu estava com eles na universidade, no Bar do Anísio desde o começo, passava a noite tocando violão, berrando no botequim até de manhãzinha.  Era essa a minha vida.

A Arquitetura e a Música são duas linguagens diferentes.  Uma trabalha com a   sonoridade, com as palavras, o que elas significam; e a outra trabalha com o espaço que se comunica entre as necessidades que as pessoas têm, sozinhas ou em grupo, para desempenhar determinadas atividades.  Essa é a função da arquitetura Para mim essas duas coisas estão muito juntas, mutuamente elas se alimentam.

Às vezes, a busca de uma frase para uma música,  apoiada numa compreensão da vida e iluminada por algum conceito,  é algo que na arquitetura eu aplico de outra forma e não conflito nisso.

PESSOAL DO CEARÁ
Eu
comecei a fazer música a partir de 1971, mas antes estava no meio desta turma desde 1965, ao entrar na universidade.  O núcleo físico onde o chamado Pessoal do Ceará aconteceu foi a minha faculdade Eu fui presidente do diretório da Arquitetura.  Éramos onze alunos e esse lugar virou um ponto de convergência da juventude que tinha interesse intelectual em cinema, música em geral, jazz, tinha também futebol, política.  E chegaram muito amigos, uns mais velhos, outros mais novos.  Os mais velhos como Petrúcio Maia, Augusto Pontes e Rodger Rogério eram os decanos, o miolo inicial Depois veio o Brandão, Ricardo Bezerra, Fagner, Belchior (que tinha sido meu colega de colégio e que eu revi na faculdade, ele tocando violão e compondo)...  Fizemos uma turma que se encontrava no diretório, aquele clima de movimento estudantil, revolução de costumes, a pílula

Foi nesse clima que se formou o “Pessoal do Ceará”, mas não foi aqui.   Aconteceu no Recife com Geraldo Azevedo, Alceu Valença.  Era uma coisa do Brasil todo.  Na Bahia, Caetano um pouco antes, mas a mesma idéia, pessoas que se aglutinavam em torno de interesses como o cinema francês etc.  Eram várias turmas, até que chegou o pessoal mais novo, mais “pop” como Fagner, bem mais jovem que a gente, com outra coisa, misturou tudo e deu o “Pessoal do Ceará”, que, na realidade, é um título para designar pessoas do mesmo lugar e da mesma época, mas não era um grupo no sentido de ter um projeto, não havia um manifesto conjunto, um acordo.  Se você comparar os trabalhos de Petrúcio Maia, Belchior e Fagner, vai notar que são coisas paralelas

BALADA DE AGOSTO (CD Fagner e Zeca Baleiro, 2003) X PARAÍSO PROIBIDO (LP Romance no Deserto, de Fagner, 1987) - A mesma melodia – duas letras diferentes
Não é a primeira vez que se tem uma melodia com  duas letras.  Se não me engano, Manhã de Carnaval tem duas letras. Mucuripe tem duas melodias.  O Belchior tem um disco com uma música com duas versões, uma dele e outra do Gil.  O Zeca Baleiro ouviu a melodia em uma fita e fez uma letra. O Fagner não lembrava mais da nossa (Paraíso Proibido), pois foi uma música que não se impôs.  Eu gosto, mas ela ficou meio esquecida e isso é uma situação que não me incomoda.  Eu disse: tudo bem, grava com outra letra.  O Zeca conheceu a melodia, mas não conhecia com a minha letra Eu acho que a letra do Zeca é melhor que a minha.

FAGNER E ZECA BALEIRO
A história deste encontro foi a seguinte: quem apresentou Zeca Baleiro ao Fagner foi o letrista Sérgio Natureza, no Rio de Janeiro Eles tiveram um primeiro encontro rápido, mas eu tinha conhecido o Zeca. Ele veio a Fortaleza fazer um show e mandou me convidar Eu fiquei na platéia, e quando o show terminou, a pessoa da produção me levou até o camarim , eu o parabenizei pelo show e ele disse que queria conversar comigo.  Conversamos no hotel até às cinco horas da manhã e, a partir daquele dia, senti como se o conhecesse há muitos anos.  Uma pessoa com quem tive uma grande e imediata identificação em vários aspectos Ele me disse que ouvia muito minhas músicas, conhecia todo meu repertório e que ouvia muito Fagner.  Combinamos de a gente se encontrar, no dia em que Fagner estivesse na cidade.  Outra ocasião ele me disse que tinha conhecido Fagner no Rio, mas que tinha sido rápido aconteceu de os dois estarem em Fortaleza Nos encontramos, batemos um papo, depois eles se encontraram novamente e um dia Zeca me ligou para dizer que o Fagner tinha tido a idéia de nós três nos reunirmos para fazer um trabalho em conjunto.  Podia ser um show, um disco ao vivo Nos encontramos  na casa de Fagner, na praia, e discutimos muitos conceitos sobre isso, muitas idéias e fizemos algumas músicas.

Eu vinha fazendo com o Zeca algumas canções e a coisa foi evoluindo.  Fizemos um show para experimentar parte dessas músicas, depois nos reencontramos e fizemos mais outras para fechar o disco. Eles fizeram algumas em dupla, eu fiz umas com Fagner, outras com o Zeca e algumas nós três.

TRÊS IRMÃOS
A idéia da canção Três Irmãos surgiu quando eu estava em Paris, há uns 10 anos, visitando a FNAC de Eu gosto muito de música francesa e vi uma coleção de 20 discos da história da música francesa desde o ano de 1200 até a atualidade.  Escolhi alguns volumes e entre eles tinha um que era composto de baladas, canções que lembram a literatura de cordel.  Essas canções eram usadas para passar as informações da época às pessoas analfabetas.  Os cantadores iam pelas estradas contando as histórias.

Na primeira audição, essa música me impressionou muito pela letra e pela semelhança com a “coisa” nordestina.  Traduzi a letra e fiquei pensando em trazê-la para a atualidade, com o tema original, porém com o cenário de hoje.  O que tem em comum entre a canção francesa original e a minha é o tema em que três irmãos são brutalmente assassinados injustamente Eu peguei o tema e trouxe para a cena urbana de hoje.  Na excursão de Fagner com Zeca Baleiro em 2002,  era essa canção que abria os shows Esses shows foram como uma experiência, uma preparação, uma coisa muito ousada, com oito a dez músicas inéditas.  Nem todas foram para o disco e o restante eram os sucessos de cada um Um show muito interessante.

MÚSICA NA INTERNET/PIRATARIA
Nós estamos diante de um salto tecnológico  que produz a alteração da cultura, de tanta coisa…Assim como a invenção da roda, da pólvora, nós estamos diante de uma situação dessas.  O que me impressiona é que ninguém fala do prejuízo dos autores, só se fala do prejuízo das gravadoras.  A arrecadação está caindo e eu acho que esta cultura toda de arrecadação de direito autoral tem que sofrer uma revolução.  Nós temos que descobrir outras formas de o autor ser recompensado, novas formas que eu não sei ainda quais são, mas não acredito que haja regresso nessa tendência do milênio de se copiar tudo.  Acredito que os negócios vão mudar nessa área, talvez se deixe de vender disco mesmo, no sentido físico de se comprar um CD, colecionar na prateleira… Pode ser que esse sistema que estão tentando nos Estados Unidos, de vender música unitariamente por um preço que tende a cair cada vez mais, funcione…Naturalmente que uma música minha, vendendo pela internet,  venderia muito mais que em uma loja, por exemplo. Porque na internet existe a acidentalidade, a casualidade; a loja não, tem que sair de casa e ir até lá.  Na internet eu posso encontrar uma música, gostar, saber quanto é, dar um clique e pronto, o dinheiro está no banco.

FAUSTO CANTOR
A primeira vez que cantei em disco foi na época do disco coletivo Soro, do selo EPIC, que o Fagner dirigia na CBS.  O pessoal até brincava com a sigla na época, chamando de “cearense bem sucedido”, mas não eram só cearenses, tinha pernambucano, carioca… O Fagner foi convidado para dirigir  O EPIC que era um selo que não “pegava” aqui no Brasil.  A CBS era muito dependente do Roberto Carlos e o selo EPIC veio a diversificar o elenco: gravaram Amelinha, Robertinho de Recife, Clodo, Téti, Rodger,  o álbum duplo coletivo Massafeira, Cirino etc.  De todo mundo, só eu realmente não gravei, porque nunca disse que queria gravar.  Nunca manifestei esse desejo, nunca tive pique para essa atividade, pra luta da carreira, aquela disposição.  Eu sempre fui uma pessoa discreta, então nunca cogitei.  No Soro fui lá, dei aquela “palhinha” e pronto.  Só vim a cantar aqui, porque nos meus 50 anos me ofereceram para fazer um disco.  Aí veio aquela idéia de chamar os parceiros, mas eu não gosto desse tipo de disco, acho meio falso.  Aí eu disse que eu mesmo podia cantar minhas músicas.  E na verdade, eu tive que aprender, pois eu sempre cantei, mas no botequim… Nunca cantei em palco e nunca tinha gravado disco até que fiz aquele primeiro (Esquinas do Deserto).  Não tenho  esquema para vender no Brasil todo, mas aqui no Ceará os meus discos vendem cerca de quatro, cinco mil cópias.

Quem se interessar em adquirir os dois CDs de Fausto Nilo, Esquinas do Deserto e Casa Tudo Azul eles podem encontrados no site da loja Desafinado, de Fortaleza (www.desafinado.com.br), pelo email do Fausto Nilo (fnilo@secrel.com.br) ou pelo fone (85) 264.9090.