UM DISCO PARA NÃO MORRER DE ESPLIM
Geraldo Medeiros Júnior
“Um quilo de levedo, pra não morrer de bêbado”.
“um quilo de ópio, pra não morrer de ócio”.
um quilo de Raimundim, para não morrer de esplim
Quer saber o melhor remédio contra o esplim? O novo disco de Fagner. Sim, o
velho e bom Raimundo Fagner! Se você é daqueles que acham que a obra de
Fagner deveria ficar restrita aos discos dos anos setenta e início dos anos
oitenta e que, de lá pra cá, o que se viu foi um cantor preso às baladas
românticas, tocadas à exaustão nas rádios e nos programas de auditório da
tv, fique sabendo que está desatualizado. E muito!
Uma nova fase da carreira de Fagner, síntese dos períodos anteriores, começou a se desenhar desde o disco Raimundo Fagner, de 1996. Ali, já se via a preocupação com um repertório primoroso e arranjos sofisticados. Daí em diante, descontados os projetos comemorativos e os lançamentos de dvds que resgataram os grandes sucessos da carreira, viu-se discos que oscilaram entre músicas de letras fortes, boas melodias e de ritmos regionais.
Em seus dois últimos trabalhos, Fagner já havia mostrado que ainda tem muito a contribuir com a música brasileira. Em 2001, um belíssimo disco de inéditas, que deixou interpretações definitivas, a exemplo de Certeza, Muito Amor, O Vinho, Sem Teto, Jardim dos Animais e Tempestade. No ano passado, uma importante parceria com Zeca Baleiro, que rendeu um disco de inéditas e um dvd ao vivo, onde se destacam Balada de Agosto, Azulejo, Três Irmãos, Cantor de Bolero, entre outras.
O cd Os Donos do Brasil, que começa a chegar às lojas, é prova real de que é injusto taxar o Fagner atual de brega ou de coisa parecida. É um disco do bom compositor Raimundo Fagner, presente em nada menos do que dez das treze faixas. É, também, de pura poesia. Versos musicados a partir de poemas de Francisco Carvalho, ou letras de músicas compostas pelos geniais de sempre, Fausto Nilo, Capinan, Abel Silva e Brandão, dão uma sensação de volta ao passado, ao mesmo tempo em que se vê um Fagner síntese, melhor do que nunca.
Os poemas de Francisco Carvalho marcam em muito o novo trabalho. São letras sintonizadas com o social (“que bicho é o homem de salário fixo?” ou “um quilo de arroz para não morrer de fome”), com o transcendental (“a casa é uma pilastra que sustenta a alma”), com o rural ingênuo (“esse touro quando mija, fecunda o sexo das vacas”). São letras novíssimas, musicadas por quem acha que o seu trabalho não está terminado, mas, antes, existem muitos caminhos ainda a serem reinventados.
A quilométrica O Bicho Homem, de quase sete minutos de duração, merece destaque por ser uma crônica social, a respeito do papel do homem, das incertezas, do sofrimento, do amor, do carinho e do medo de morrer. Aquele mesmo menino guerreiro, dos anos oitenta, embora mais menino e mais experiente.
Da parceria com Fausto Nilo, apenas Rosa da China, belíssima canção, com direito a musa com blusa lilás, ou citações à bela da tarde. O solo de guitarra, remete a Ave Maria no Morro. Dezembros, sucesso nacional a partir da novela Da cor do Pecado, é repetida, com a mesma gravação do disco em parceria com Zeca Baleiro.
Duas belíssimas músicas de Roberto Mendes, engrandecem o cd. Faz de Conta, em parceria com Herculano Neto, remete ao Fagner dos anos setenta, nos versos “nem sempre andei assim, nem sempre fui tristeza”; alguém se lembra de “não sou alegre nem sou triste, sou poeta”? Versos como “faz de conta que o tarde é cedo e o agora não espera”, são de quem vive o tempo e o ritmo da poesia pela beleza. Todo Seu Querer é outra, feita com Capinan, romântica, quentíssima, sensual, “tua mão em fogo acende teu corpo, tira tua roupa procurando a flor”. Este é o Fagner dos anos oitenta?
Em parceria de Fagner com Capinan, consta ainda a lindíssima Nome de Estrela. Com belos solos de guitarra, que lembram Robertinho de Recife (os solos de Deslizes nos shows dos anos oitenta), embora sejam executados por Fernando Caneca. Os versos “pra chorar, basta que haja beira-mar”, ou “como um pássaro que a noite entristeceu e traz nos olhos a melancólica lua” remetem às noites de lua cheia, com violão e boas companhias. A ave noturna é do Fagner dos anos setenta, os solos de guitarra dos oitenta, mas a síntese, com uma poesia viva e bela, é a do artista de hoje.
As parcerias com Brandão e Abel Silva são retomadas. Do primeiro, Mistério de Amor, digna das boas parcerias dos dois, a lembrar Sonho de Arte ou Beleza. Do segundo, na realidade uma regravação, que para muitos soará como inédita: Ressurreição é a mesma música já gravada por Fagner e Agnaldo Timóteo no início dos anos oitenta. Numa gravação mais contida, porém de igual beleza, Fagner retoma uma canção que deveria estar mais presente em seu repertório. Romântica e bela, poderia estar em qualquer disco dele, em qualquer uma das quatro décadas de seu repertório.
Outra música que soará como inédita, deverá ser Donos do Brasil, título do disco. Já gravada no cd de Nonato Luiz, a música se transformou num sambão muito bom. Está presente, mais uma vez o compromisso com o país, nos remetendo inevitavelmente a pensar: quem são atualmente os donos do nosso país?
Numa possível resposta, a Canção da Floresta é um hino ecológico, de autoria de Sebastião Dias, digno dos discos de Roberto Carlos, já exaustivamente gravados desde os anos oitenta. Talvez nunca seja demais denunciar o que fazem com o nosso planetinha, em especial quando se tratam de versos e melodias eternas.
Os arranjos e a produção ficaram sob a incumbência de Rildo Hora e do próprio Fagner. Como novidade, o time de músicos não é composto pelos cearenses, componentes da banda que o acompanha nos shows. Agora, entram Carlos Bala na bateria, Fernando Caneca na guitarra e Fernando Merlino nos teclados, além de muita percussão, para os sambas Donos do Brasil e O Bicho Homem. Jamil Joanes, Mingo Araújo e João Lyra, membros permanentes da banda, estão em várias faixas.
Ecológico, social, romântico, rural, poético pelo poético, é esse o Fagner de 2004. Como sempre, desapegado de rótulos, livre, solto, sonhador e com os pés no chão, ele consegue fazer um disco para agradar seus ex-fãs dos anos setenta e os mesmos que continuaram nas duas últimas décadas.
Não importa qual o Fagner que você prefere. Da dura poesia dos anos setenta? Do romantismo dos anos oitenta e noventa? A síntese de hoje? Num país de tantas injustiças sociais, de tanto desgoverno, de tanta música ruim nas rádios, o novo disco é necessário como arroz, água, pedra, levedo, ópio e aipim. Nem que seja para não morrer de esplim.